Carta aberta da Associação de Servidores do Arquivo Nacional (Assan)
- ASSAN 2025
- 22 de jan.
- 5 min de leitura
Atualizado: 25 de jan.
Excelentíssimo senhor presidente da República Federativa do Brasil
Luiz Inácio Lula da Silva
Os servidores do Arquivo Nacional se manifestam por meio desta carta para expressar sua preocupação com mais uma troca de sua direção-geral, em virtude do anúncio de saída da atual ocupante do cargo, Ana Flávia Magalhães Pinto. Uma das mais importantes instituições arquivísticas brasileiras, o Arquivo Nacional teve sua criação prevista na Constituição de 1824, efetivada pelo regulamento n. 2, de 2 de janeiro de 1838. Contudo, ao completar 187 anos, pouco temos a comemorar.
Destinado à guarda dos documentos relativos à memória nacional, na década de 1980 o Arquivo Nacional passou por um projeto de modernização, com investimentos e parcerias, nacionais e internacionais, que redefiniu o seu papel frente à administração pública federal. Esse processo, que se deu num cenário de transição gradual para o regime democrático, procurou superar o perfil de arquivo histórico tradicional, possibilitando que a instituição assumisse seu papel para garantia de direitos e exercício da cidadania, e como órgão de apoio à administração, a partir da implementação da gestão de documentos, tornada um dispositivo constitucional em 1988.
Ao longo da década de 1990, apesar de conviver com baixo investimento e orçamento reduzido, o Arquivo Nacional esteve à frente de importantes conquistas para a área arquivística, como a aprovação da lei n. 8.159/1991, a chamada Lei de Arquivos, que dispôs sobre a política nacional de arquivos públicos e privados, e instituiu o Conselho Nacional de Arquivos (Conarq) e o Sistema Nacional de Arquivos (Sinar).
Durante os governos de Vossa Excelência e da presidenta Dilma Rousseff, novos avanços para a área arquivística foram alcançados, como a aprovação do decreto n. 4.915/2003, que criou o Sistema de Gestão de Documentos de Arquivo (Siga), fortalecendo a autoridade técnica do Arquivo Nacional na gestão de documentos da administração pública federal; do decreto n. 5.584/2005, que dispôs sobre o recolhimento dos documentos arquivísticos públicos dos órgãos de repressão da ditadura militar; a realização do primeiro concurso público da história do órgão; a criação do Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil (1964-1985) – Memórias Reveladas; a aprovação da lei n. 12.527/2011, conhecida como Lei de Acesso à Informação, entre outros.
Este legado sofreu um sério revés no contexto do golpe contra a presidenta Dilma Rousseff em 2016 e, especialmente, durante o governo de Jair Bolsonaro. Desde então, assistimos à implementação de uma série de medidas que atentam contra a missão institucional e fragilizam o papel da maior instituição arquivística nacional, forjadas no âmbito de gestões autoritárias que se distinguiram pela prática do assédio institucional e do assédio moral aos servidores, e permitiram o avanço dos interesses privados e de mercado sobre as funções dos arquivos públicos.
Dentre as inúmeras medidas que podem ser citadas, merecem destaque as decorrentes da aprovação do decreto 10.148/2019, que suprimiu do Arquivo Nacional a competência de autorizar a eliminação de documentos produzidos pela administração pública federal e reestruturou o Sistema de Gestão de Documentos de Arquivo (Siga), instituindo o que vem sendo denominado de ‘guarda compartilhada’, que abre um caminho perigoso para a terceirização dos serviços arquivísticos públicos, ameaçando o pleno acesso aos documentos. Cabe destacar ainda a elaboração de uma política que dificulta a entrada de documentos privados na instituição, além do esvaziamento do projeto Memórias Reveladas, que, em conjunto com a rede de arquivos do país, desempenhou papel estratégico nos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade.
A vitória de Vossa Excelência nas eleições de 2022 e o esforço em congregar a todos na obra de reconstrução do país geraram expectativas de reversão do cenário adverso enfrentado pelo Arquivo Nacional e a perspectiva de um novo tempo de avanços. No entanto, isso não aconteceu.
A transferência do Arquivo Nacional do Ministério da Justiça e Segurança Pública para o recém-criado Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI), sem qualquer projeto político que justificasse a mudança, agravou a incerteza administrativa em que se vê mergulhado o órgão. Verificou-se um retrocesso com sua mudança para secretaria, o que provocou a perda de sua reduzida autonomia administrativa. O decreto n. 11.437/2023 desferiu um duro ataque, ao institucionalizar a chamada ‘guarda compartilhada’, a despeito dos diversos movimentos da área que clamavam pela revogação do decreto n. 10.148, aprovado no governo de Jair Bolsonaro. As sucessivas reformas administrativas foram responsáveis pela expansão de cargos de ‘assessoramento’ da direção-geral, criando áreas totalmente esvaziadas, em detrimento dos setores técnicos. O projeto Memórias Reveladas ainda enfrenta dificuldades em sua reorganização e foi descaracterizado, nessa gestão, de seus objetivos iniciais. Outro pleito antigo dos servidores, o plano de carreiras, não foi objeto de qualquer discussão.
Além disso, o reduzido orçamento previsto para 2025 parece não dar conta das muitas necessidades do órgão, que tem enfrentado problemas estruturais em seu conjunto arquitetônico no Rio de Janeiro e em Brasília, o que coloca seu acervo em risco, conforme denunciado inúmeras vezes.
Todos esses pontos foram levados, pela Assan e outras entidades de áreas como arquivologia e história, ao Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI), sem sucesso. Não conseguimos abrir um canal de diálogo com a atual direção ou a ministra Esther Dweck, que se manteve igualmente refratária aos pedidos de audiência de entidades da área. Assim, em dois anos de governo, ainda não se evidenciou qual é o projeto político do MGI para o Arquivo Nacional.
Em tempos em que ainda é preciso atuar em defesa de nossa democracia, torna-se ainda mais urgente recolocar o Arquivo Nacional e os arquivos públicos em geral como uma pauta política importante para o país. Defender os arquivos públicos é contribuir para a democracia, ao garantir a transparência e a eficácia da gestão pública, assegurar direitos aos cidadãos e preservar nossa memória.
Assim, reivindicamos que o cargo de direção-geral seja ocupado por quem, de fato, compreenda o papel do Arquivo Nacional como órgão responsável pela política de gestão de documentos públicos do Executivo federal e que seja capaz de formular e apresentar um projeto político-institucional para sua gestão, comprometido com o processo de recuperação do protagonismo da instituição em sua área de atuação, mas também aberto ao diálogo com os servidores e entidades representativas da área arquivística e engajado no combate à prática de assédio moral. Que a próxima direção esteja ciente e comprometida com as resoluções da I Conferência Nacional de Arquivos e com a realização de sua segunda edição. E, por fim, que sejam retomadas as discussões sobre a posição do Arquivo Nacional na administração pública federal, como órgão dotado de maior autonomia e fortalecido em suas funções primordiais.
A proeminência que a instituição havia conquistado nas últimas décadas, em gestão de documentos e preservação digital, foi debilitada ao longo das gestões recentes. Reverter este quadro é preservar o legado do processo de modernização institucional e fazer jus a um processo de união e reconstrução do Estado brasileiro, agenda de seu governo.
Rio de Janeiro, 22 de janeiro de 2025.
Associação de Servidores do Arquivo Nacional (Assan)