Boletim n. 314 - fevereiro/2025
- ASSAN 2025
- 24 de fev.
- 17 min de leitura
Atualizado: 13 de mar.

Apresentação
Este número do Boletim da Assan apresenta um balanço da gestão de Ana Flávia Magalhães Pinto à frente do Arquivo Nacional (2023-2025), sob a subordinação do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI), ocupado pela ministra Esther Dweck. A transferência do órgão do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) para o MGI, na reforma ministerial realizada no início do governo Lula, sem uma justificativa que demonstrasse sua razão administrativa ou projeto político que orientasse tal mudança, representou a continuidade das ações de fragilização da instituição iniciadas no contexto do golpe contra a presidenta Dilma Rousseff. Além das investidas contra a missão do Arquivo Nacional (AN), no cotidiano institucional a linha de atuação da direção-geral foi caracterizada por pouca transparência, ausência de diálogo com o corpo técnico e práticas autoritárias, que acabavam sendo reproduzidas por seu corpo diretivo.
Todas essas questões foram tratadas em diversos documentos produzidos pela Assan, que se encontram disponíveis no blog da associação. A decisão de retomar esses pontos assinala a necessidade de defender a instituição e seus servidores, sem esquecer o que experimentamos nos dois últimos anos. Além disso, acreditamos que o não esquecimento de tais práticas pode contribuir para que se discutam e se promovam, desde que haja vontade política, relações menos tóxicas de trabalho.
O que apresentamos a seguir contempla um pequeno recorte, com alguns temas que foram objeto de preocupação dos servidores e da comunidade arquivística. Muitos aspectos importantes deixaram de ser mencionados, mas demandam discussão urgente, como a ausência de uma política de pessoal, tema diretamente relacionado às constantes denúncias de casos de assédio na instituição.
Reestruturações administrativas: o ‘inchaço’ da direção-geral e a perda de espaço das áreas técnicas
O primeiro ato que marcou a gestão da diretora-geral Ana Flávia Magalhães Pinto foi a reforma administrativa aprovada pelo decreto n. 11.437/2023, que estabeleceu uma nova estrutura regimental para o Arquivo Nacional na qual a instituição teria sido ‘transformada’ em uma secretaria do MGI. Com esse “status” de secretaria ministerial, o Arquivo Nacional teve reduzida sua autonomia administrativa, agravando a instabilidade institucional atravessada pelo órgão desde 2016.
Igualmente grave foi a institucionalização pelo decreto n. 11.437/2023 da chamada ‘guarda compartilhada’, que fora concebida durante o desastroso governo de Jair Bolsonaro e abre caminho para a terceirização dos serviços arquivísticos públicos. Apesar da reação contrária dos servidores e da comunidade arquivística, e do ‘compromisso’ assumido pelo MGI de não implantar qualquer ação nessa direção, curiosamente tal dispositivo vem sendo mantido nos decretos e na portaria relativos ao Arquivo Nacional aprovados posteriormente.
De março de 2023 a dezembro de 2024, o Arquivo Nacional passou por sucessivas reestruturações administrativas, cuja característica marcante foi a expansão das áreas de ‘assessoramento’ da direção-geral e, consequentemente, do quantitativo de cargos de confiança, com a criação de várias coordenações e coordenações-gerais, algumas delas esvaziadas, que contam apenas com o detentor do cargo, sem nenhuma equipe para execução de seus trabalhos. A estratégia de debate sobre essas reestruturações claramente objetivava a reduzida participação dos setores, e os resultados só eram conhecidos pelos servidores por meio do Diário Oficial.
Acompanhe abaixo a evolução do número de cargos, levando-se em consideração apenas coordenação, coordenação-geral e diretoria-adjunta nas áreas de ‘assessoramento’ da direção-geral, excetuando a coordenação de apoio ao Conarq, transformada em secretaria-executiva em 2023:

Não podemos esquecer que, em um primeiro momento, os cargos para acomodar a equipe trazida pela ex-diretora-geral Ana Flávia Magalhães Pinto, como os de coordenadores-gerais de Comunicação e de Articulação de Projetos e Internacionalização – assumidos, respectivamente, por Jader de Moraes e Monica Lima – foram instituídos a partir da extinção de cinco divisões técnicas (Biblioteca, Documentos Privados, Editoração e Programação Visual, Educação em Arquivos e Pesquisa), conforme informado pela Diretora de Processamento Técnico, Preservação e Acesso ao Acervo (DPT), Diana Santos Souza, em reunião com os servidores no auditório, em março de 2023. Estas divisões foram recriadas somente em dezembro daquele ano, demonstrando total desconsideração com as áreas afetadas. Apesar disso, todos os serviços foram mantidos pelos servidores, para que não houvesse prejuízos à instituição.
A desproporção assumida nessas reestruturações, com alta concentração de cargos ligados à direção-geral, ainda pode ser medida em comparação com outras áreas. Por exemplo, atualmente, o número de cargos de coordenador-geral na direção-geral é maior do que o número de cargos desse mesmo nível na Diretoria de Processamento Técnico, Preservação e Acesso ao Acervo (DPT), que concentra grande parte das atividades e dos servidores do Arquivo Nacional.
Os três slides do planejamento estratégico institucional (2024-2027)
Aprovado pela portaria AN n. 135, de 26 de dezembro de 2023, o planejamento estratégico do Arquivo Nacional para os anos de 2024 a 2027 é um documento que prima pelo seu caráter sucinto (três slides!) e propósitos vagos. A despeito da importância do planejamento estratégico para definição dos objetivos e metas das instituições, de forma a atender ao interesse público e garantir a implementação das políticas públicas governamentais, o material apresentado foi elaborado sem uma discussão mais ampliada com as áreas técnicas. Além disso, a direção-geral e seu corpo diretivo parecem não ter se detido no necessário rigor que a elaboração desse documento exigia.
O processo SEI 08227.003565/2023-09 relacionado à questão não é público, como se tornou hábito na instituição, impedindo que tenhamos mais detalhes. A comunidade arquivística também se manifestou a respeito da escassez de informações. Houve, inclusive, solicitação do boletim Giro da Arquivo, junto ao FalaBR, da íntegra de todos os documentos referentes ao planejamento estratégico. A resposta remeteu aos três slides. Após uma segunda tentativa, a direção-geral declarou que documentos como relatórios, atas de reuniões, entre outros, demandados pelo boletim, não foram produzidos.
Algumas iniciativas previstas causaram estranheza entre os servidores, como a “implementação de um projeto de residência histórico-artística” e a “criação do Instituto de Ciência e Tecnologia em Gestão de Documentos e Arquivos”, inseridas no Objetivo 5 – Estruturar estratégia de reposicionamento do AN como protagonista no desenvolvimento de projetos e programas de pesquisa em gestão de documentos e arquivos.
O que seria um projeto de residência histórico-artística em uma instituição arquivística? Continuaremos sem saber, pois essa iniciativa foi excluída, de acordo com o Sumário executivo do relatório do planejamento estratégico 2024, publicado em janeiro de 2025. Já a segunda iniciativa citada permanece, mas “a falta de recursos financeiros e a escassez de pessoal especializado limitam o [seu] progresso”. A despeito da necessidade de uma discussão sólida sobre o estabelecimento de um Instituto de Ciência e Tecnologia em Gestão de Documentos e Arquivos, que não foi realizada, nos limitamos, aqui, a questionar como uma proposta de tal complexidade foi incluída sem considerar as limitações financeiras e de pessoal, que são bastante graves, como todos sabemos. Ao mesmo tempo, outros projetos prementes, como o Novo Sian, discutido há anos na instituição e parte do Objetivo 3 – Ampliar as ações de preservação, processamento técnico, acesso e difusão de acervo, não parecem se constituir como prioridade de fato, como podemos depreender das poucas informações fornecidas além do ‘documento de visão’ citado no referido sumário.
Outras propostas ‘inusitadas’ poderiam ser discutidas aqui, mas, para não nos alongarmos, é preciso reiterar que, ao ignorar as áreas técnicas, a direção-geral do Arquivo Nacional elaborou um planejamento estratégico institucional bastante problemático, com equívocos alarmantes, que revelam um conhecimento impreciso das atividades do órgão e, mais do que isso, do papel de uma instituição arquivística nacional para a administração e para a sociedade.
O projeto político de construção de uma imagem pública
“Reposicionar a imagem do Arquivo Nacional perante a sociedade e ampliar a comunicação interna” constituiu-se na prioridade da gestão iniciada em 2023, conforme informado em reunião com servidores. Para execução de tal projeto, a Divisão de Comunicação Social, vinculada à direção-geral, foi transformada em Coordenação-Geral de Comunicação, em março de 2023. Outra iniciativa imediata foi a criação de um boletim, com as notícias da semana, divulgado na intranet, portal e redes sociais. O primeiro Giro da Semana foi divulgado no dia 10 de abril de 2023, apropriando-se, de forma surpreendente do título de um importante boletim da área, o Giro da Arquivo – após a diretora se recusar a ser entrevistada por este mesmo veículo –, e assumindo logo depois a periodicidade semelhante, com lançamento também às terças-feiras. O material elaborado nesses dois anos merecia uma análise, mas nos deteremos no fato de que os boletins não ampliaram a divulgação dos trabalhos do Arquivo Nacional, permanecendo centrados na agenda da direção-geral: eventos, viagens, visitas de autoridades, entrevistas concedidas a diferentes meios de comunicação e até homenagens recebidas pela titular do cargo de diretora-geral. Ocupando um espaço diminuto, em meio ao protagonismo conferido aos gestores, são citadas algumas reuniões técnicas, visitas promovidas pela Divisão de Cultura e Educação em Arquivos (Dicea), lançamentos de publicações, ações de capacitação realizadas pelas equipes de gestão de documentos, entre outros tópicos. Rapidamente, e não por acaso, a publicação ficou conhecida entre os servidores do AN como Giro da diretora.
Este esforço de divulgação não foi acompanhado pela transparência da agenda pública da direção-geral, conforme orientação da Controladoria-Geral da União. A agenda pública da direção-geral e do seu corpo diretivo, que deveria ter sua publicização obrigatória, só era conhecida, posteriormente, por meio do Giro da Semana, permanecendo vazia e, em algumas ocasiões, sendo preenchida após a realização dos compromissos – e muitas vezes editada. Conhecidas eram apenas as viagens internacionais, cujas autorizações saíam por despachos publicados no Diário Oficial da União.
O investimento na construção de uma narrativa que apresentava um corpo diretivo ‘dinâmico’, e um Arquivo Nacional em processo de ‘reconstrução’ e ‘transformação’, não conseguiu, contudo, esconder os problemas enfrentados em razão da continuidade de políticas originadas, especialmente, no governo de Jair Bolsonaro, que fragilizaram a autoridade técnica do Arquivo Nacional, e da inexistência de diálogo da direção-geral com o corpo técnico. Tais problemas foram denunciados pela Assan e pela comunidade arquivística, que prestou seu apoio à instituição e aos seus servidores por meio de notas, abaixo-assinados, petições, além de solicitações de reuniões com a ministra Esther Dweck. O MGI, ao qual cabe a responsabilidade pela elaboração das políticas públicas arquivísticas, que tem no Arquivo Nacional um dos seus principais atores, diferentemente do esperado, acabou por seguir esse modelo de narrativa criado pela direção-geral, o que se constituiu como algo bastante grave. No âmbito ministerial, foram produzidas notas que reforçam uma imagem muito diferente daquela experimentada no cotidiano institucional. Neste “maravilhoso mundo do Arquivo Nacional” criado pela direção-geral e pelo MGI, é possível, ainda, identificar ‘equívocos’ grosseiros, como a referência à retomada da Semana Nacional de Arquivos, que nunca deixou de ocorrer desde sua criação, em 2017, ou a afirmação de que a prática de reuniões regulares da Comissão de Coordenação do Siga inexistia em gestões anteriores, o que é facilmente refutado em uma rápida pesquisa na internet.
A postura aberta ao diálogo e às críticas, que deveria caracterizar a condução de uma gestão comprometida com princípios democráticos, se contrapõe, portanto, à produção de narrativas que inviabilizam qualquer discussão mais séria sobre a necessária reversão do processo de esvaziamento do papel do Arquivo Nacional no âmbito da administração pública federal, impondo a constante luta dos servidores pela defesa da instituição.
“Acabou a palhaçada”: Gecilda Esteves, um capítulo à parte (só que não)
Poucos episódios ilustram tão bem, e de forma tão lamentável, a sistemática desqualificação dos servidores do AN promovida pela gestão Ana Flávia Magalhães Pinto quanto o protagonizado por Gecilda Esteves Silva no auditório da sede, no Rio de Janeiro, em 3 de agosto de 2023. Poucos meses depois de assumir a Diretoria de Gestão Interna (DGI), Gecilda Esteves reuniu os servidores para tratar do planejamento estratégico institucional (2024-2027). A diretora da DGI, logo de início, afirmou se sentir no direito de “meter o dedo na cara” dos presentes – foram palavras desse tipo as escolhidas para a comunicação, por mais inacreditável que pareça. De acordo com ela, os servidores haviam se “acostumado a trabalhar em uma instituição que não funciona”, atribuindo o fato não apenas à “vagabundagem”, mas também à inércia e à incompetência: “ninguém levanta a ‘buzanfa’ da cadeira para resolver as coisas”, “vocês precisam parar de achar que o que fazem tem um fim em si mesmo”, “vocês não sabem o que querem”, “vocês não sabem planejar”, “não sabem identificar os interlocutores certos”, “não sabem elaborar e cumprir cronogramas”, “não sabem registrar o que fazem”, “vocês têm uma visão distorcida da realidade”, “vocês têm uma visão equivocada do mundo”. A diretora criticou o fato de os servidores serem, segundo ela, muito “apegados” aos conceitos da arquivologia e da administração, dizendo que precisavam “abrir a cabeça”. Questionada pelos servidores, interrompia-os, sem que pudessem concluir suas falas: “vocês não entendem o que estou falando”, “acabou a palhaçada”. Essas e muitas outras frases do gênero foram ditas por Gecilda Esteves na ocasião, sem que qualquer membro do corpo diretivo tentasse contê-la. Diana Santos Souza, diretora da DPT, por exemplo, foi uma das que estiveram presentes durante todo o tempo, e não se manifestou. Se a reunião fosse um evento isolado, já seria grave o bastante, mas o desrespeito infelizmente foi a tônica da relação estabelecida com o corpo de servidores do órgão, embora nem sempre de maneira tão performática. Não por acaso, Gecilda Esteves foi alçada ao posto de diretora-geral substituta pouco depois da sessão protagonizada no auditório – assumindo, na sequência, o novo cargo de diretora-geral adjunta. Ao invés de ser advertida, foi premiada, o que reforçou exemplarmente a autorização, ainda que velada, para a prática de assédio moral contra servidores, uma das marcas dessa gestão.
Atenção aos arquivos privados: descompasso entre discurso e prática no AN
A política de aquisição de arquivos privados do AN, elaborada na gestão de Neide de Sordi como diretora-geral, submete as eventuais entradas à exigência de prévia declaração de interesse público e social, concedida por ato ministerial a partir de recomendação do Conselho Nacional de Arquivos (Conarq). Uma das primeiras alterações normativas instituídas no AN durante o governo Bolsonaro, essa política reduz a autonomia institucional e submete a aquisição de arquivos produzidos por pessoas e entidades coletivas a um longo processo burocrático e a um crivo sobretudo político, determinado pelo governo da ocasião. Constitui, na prática, um empecilho à aquisição, podendo deixar em risco arquivos relevantes para os campos da história e da memória social, com reflexo nos processos democráticos de construção de identidades pautadas, por exemplo, pelas categorias de gênero, raça e regionalidade. A despeito do discurso de valorização dessas pautas, a política de aquisição implementada sob gestão bolsonarista foi mantida por Ana Flávia Magalhães Pinto, embora sua revogação tenha sido requisitada desde a chegada da diretora-geral ao órgão.
Paralelamente, para fora do AN, muito se argumentou em defesa dos arquivos comunitários, produzidos por grupos da sociedade que compartilham herança cultural e histórica comum, destacando-se aqueles associados a processos de exclusão, que têm na salvaguarda de sua documentação um poderoso instrumento para a justa garantia de direitos. O paradigma do “arquivamento pela comunidade”, que ganhou projeção em contexto internacional sob a perspectiva do multiculturalismo, caracteriza-se pelo incentivo à manutenção desses arquivos muitas vezes fora de instituições arquivísticas tradicionais, junto a seus grupos, assim fortalecidos. É preciso destacar que, mesmo nesses casos, a aquisição de arquivos privados não foi abandonada enquanto política ativa das instituições arquivísticas nacionais, em relação a conjuntos documentais de coletivos, como também aos pertencentes a pessoas físicas, de interesse de grupos sociais mais amplos.
No Brasil, infelizmente, o incentivo público ao “arquivamento pela comunidade” ainda não é uma realidade. O que se percebe é que o importante discurso em defesa dos arquivos comunitários pela gestão de Ana Flávia Magalhães Pinto acabou substituindo qualquer iniciativa de atuação efetiva do AN nessa área. A instituição continua sendo procurada por interessados em salvaguardar documentos privados relevantes e pertinentes ao acervo, sendo encaminhados a um longo e desanimador processo para obtenção da declaração de interesse público e social, sem qualquer garantia de que, mesmo declarados, serão aceitos pelo AN. Novas remessas de importantes arquivos já custodiados pela instituição enfrentam obstáculos para sua incorporação. No campo dos arquivos privados, entre outros, discurso e prática soam descompassados. Independentemente de qualquer intenção voltada a arquivos privados que se mantenham nas mãos de seus proprietários, não se pode abandonar a perspectiva da incorporação desses arquivos a instituições arquivísticas públicas, inclusive considerando as possibilidades de preservação e de acesso a essa documentação, por sua relevância à sociedade como um todo.
O Siga em questão
O Sistema de Gestão de Documentos de Arquivo (Siga) da administração pública federal, que tem o Arquivo Nacional como órgão central, foi criado pelo decreto n. 4.915/2003, no primeiro governo Lula, tendo como finalidades promover a racionalização da produção da documentação arquivística pública; a preservação do patrimônio documental arquivístico da administração pública federal; a garantia de acesso aos documentos ao cidadão e aos órgãos e entidades da administração pública federal, entre outras. O Siga foi reestruturado pela diretora-geral Neide de Sordi, durante o governo de Jair Bolsonaro, pelo decreto n. 10.148/2019, quando teve seu escopo ampliado e passou a ser denominado Sistema de Gestão de Documentos e Arquivos (Siga). A inclusão do “e arquivos”, e não apenas “documentos”, acabou por conferir aos órgãos e entidades da administração pública federal funções estranhas às suas missões institucionais, relacionadas à guarda, preservação e acesso à documentação arquivística permanente, antes atribuições exclusivas do Arquivo Nacional. Como os órgãos e entidades, em geral, não estão preparados para assumir essa guarda compartilhada, esse dispositivo abre caminho para a terceirização dos serviços arquivísticos, comprometendo o acesso pleno ao patrimônio documental do país.
A mudança determinada pelo decreto n. 10.148 foi institucionalizada a partir da aprovação do decreto n. 11.437/2023, que atribuiu ao Arquivo Nacional o monitoramento da guarda, da preservação e do acesso à documentação arquivística permanente custodiada de forma compartilhada pelos órgãos e entidades da administração pública federal. Além da manutenção dessa alteração, questionada repetidamente pelos servidores e por grande parte da comunidade arquivística, outro ataque veio com a aprovação da portaria MGI n. 2.178/2024, que instituiu a Subcomissão de Coordenação do Sistema de Gestão de Documentos e Arquivos do Centro de Serviços Compartilhados – Subsiga ColaboraGov, organismo intermediário entre o Arquivo Nacional e os órgãos setoriais –, fragilizando ainda mais o papel do Arquivo Nacional como órgão central do Siga. Na gestão da diretora-geral Ana Flávia Magalhães Pinto, a Coordenação do Siga ficou quase um ano sem se reunir, o que já aponta não ter sido a gestão de documentos sua prioridade, nem mesmo do MGI, ao esvaziar ainda mais o sistema com a criação do Subsiga ColaboraGov.
O esvaziamento do Arquivo em Cartaz
O Festival Internacional de Cinema de Arquivo – Arquivo em Cartaz foi criado pela equipe técnica do Arquivo Nacional em 2015. Herdeiro do pioneiro Recine, realizado pela instituição entre 2002 e 2014, em suas oito edições o Arquivo em Cartaz realizou oficinas técnicas, mostras de acervos de filmes de instituições de guarda, debates, sessões de cinema para crianças e jovens e a maior mostra competitiva de obras cinematográficas realizadas a partir de filmes e outros documentos de arquivo.
Os grupos de trabalho dedicados a realizar o Arquivo em Cartaz eram compostos de pessoas com diferentes formações e de várias áreas do Arquivo Nacional, e a preservação do acervo audiovisual e sua difusão permaneceram no centro deste projeto, a despeito de todas as (muitas) dificuldades e de alguns problemas enfrentados.
Em 2023, primeiro ano da administração Ana Flávia Magalhães Pinto, o Arquivo em Cartaz foi realizado sem uma de suas atividades mais marcantes, a mostra competitiva. Em 2024, sequer foi realizado. Não houve clareza por parte da direção-geral e da direção da área de interesse, a DPT, em relação à organização do evento, tampouco foram abertos caminhos de diálogo com os servidores que desejavam realizá-lo. Já no segundo semestre, a recém-criada Coordenação-Geral de Relações Institucionais, cujas atribuições jamais ficaram claras, foi incumbida de “repensá-lo” e realizar algo no ano seguinte, em um formato completamente “novo, nunca feito antes”. O resultado foi uma semana esvaziada em janeiro de 2025 – que ainda não sabemos se será seguida de outras ao longo do ano – em que não faltaram críticas à forma como foi realizada. A rasa tentativa de aproximação com o corpo técnico não passou de reuniões com coordenadores de área em que o projeto, já pronto, foi apresentado sem discussão. A coordenadora-geral responsável pelo projeto, Franciele Rocha de Oliveira, defendeu o novo formato, afirmando que “nunca antes os filmes exibidos foram vistos por tantas pessoas”, sem reconhecer, no entanto, que um dos cernes do Arquivo em Cartaz, a preservação de acervos, havia sido posto de lado.
A organização do festival seguiu o padrão da gestão do órgão. Autoritarismo, falta de transparência, descaso em relação às equipes e aos seus trabalhos, e desconhecimento da longa experiência acumulada pela instituição na organização do Arquivo em Cartaz, resultando em um discurso que apresenta propostas redundantes como se fossem originais dessa gestão.
Coace: uma área esquecida
O descaso com áreas técnicas finalísticas centrais na estrutura do Arquivo Nacional, como as de processamento técnico, acesso e difusão do acervo, vem sendo constantemente criticado pelos servidores do AN. No caso da Coordenação-Geral de Acesso e Difusão de Acervo (Coace), o fato é ainda mais grave, em razão da ausência de titular para o cargo. Em 2023, quando da posse de Ana Flávia Magalhães Pinto na direção-geral, a Coace estava sob o comando de uma coordenadora-geral interina, efetivada no cargo em junho de 2023 e que nele permaneceu até o final daquele ano. Sua substituta, titular da Coordenação de Pesquisa e Difusão do Acervo (Coped) desde o primeiro mês do governo Jair Bolsonaro, vem ocupando o cargo interinamente, e intermitentemente, desde então. Após mais de um ano sem titular para um cargo de alta relevância, responsável pelo acesso do público ao acervo do Arquivo Nacional, de forma presencial e virtual, e pelas ações de difusão e pesquisa, a Coace, de certa forma, é a face da instituição, seu elo com os cidadãos, e o descaso em relação a ela demonstra a reduzida importância dada pela gestão Ana Flávia Magalhães Pinto à área.
No âmbito da Coace, sobretudo da Coped, há uma insistente ausência de formalização de demandas apresentadas às equipes e de respostas às solicitações dos servidores. Propostas de projetos são encaminhadas para as instâncias superiores, mas, muitas vezes, os servidores não obtêm retorno algum. Por outro lado, projetos que constituem atribuição das áreas da Coped são realizados por instâncias diretamente ligadas à direção-geral, como a Coordenação-Geral de Relações Institucionais, sem que as equipes sequer tenham conhecimento. As informações não circulam, e as respostas não chegam, ocasionando um entrave na realização de diversas ações, inclusive atividades técnicas cotidianas que passaram a ter aprovação prévia necessária em cada detalhe.
Ainda precisamos falar sobre o Memórias Reveladas
O Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil (1964-1985) – Memórias Reveladas (MR) foi criado em 2009, tendo como objetivo estimular a localização e a organização do acervo documental do período da ditadura militar, em articulação com estados, Distrito Federal e municípios, além de pessoas físicas e entidades privadas custodiadoras de arquivos, para a difusão de informações por meio de banco de dados próprio, gerenciado pelo Arquivo Nacional. O Memórias Reveladas deveria também organizar concursos monográficos, eventos e seminários, entre outros, visando à difusão dos arquivos e ao estudo daquele período da história, “para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça”.
Desde o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff e especialmente durante o governo de Jair Bolsonaro, momento de revés para o regime democrático no país, o Memórias Reveladas passou por um período de apagamento e de esvaziamento de suas atividades, a partir de sua transferência do Gabinete da Direção-Geral do Arquivo Nacional, onde ocupava lugar de destaque, para a então Coordenação-Geral de Processamento e Preservação de Acervo (Copra). Como parte desse processo, verificou-se, por exemplo, o atraso no lançamento das obras vencedoras da edição 2017 do Prêmio de Pesquisa Memórias Reveladas e a paralisação dos trabalhos de disponibilização de acervos das Delegacias de Ordem Política e Social (Dops) junto aos arquivos estaduais. Além disso, os servidores atuantes na área foram alvos de censuras e perseguições, que ganharam ampla repercussão na imprensa.
Este quadro sofreu pouquíssimas alterações a partir de 2023, conforme denunciado pela Assan e outras entidades. O Memórias Reveladas permaneceu ligado à área de processamento técnico e acesso ao acervo, agora como uma divisão, a segunda menor unidade administrativa do AN, o que contrasta com o discurso de valorização do setor reiteradamente afirmado por Ana Flávia Magalhães Pinto. Durante sua gestão, as ações de articulação com outros arquivos, que permitem a formulação de uma política integrada de acervos arquivísticos sobre a resistência à ditadura militar, não foram retomadas conforme concebidas originalmente, enfraquecendo um projeto que assumiu grande importância, especialmente durante os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (2012-2014). Em maio de 2024, foram implementadas mudanças significativas no perfil do Memórias Reveladas, mais uma vez sem qualquer discussão com os servidores do AN. O prêmio de pesquisa deixou de contemplar teses e dissertações, e a manutenção do banco de dados Memórias Reveladas, principal ação do centro de referência, não consta mais entre seus objetivos. De acordo com a portaria MGI n. 3.073/2024, o acesso às informações reunidas pelo Memórias Reveladas deveria ocorrer por meio do Sistema de Informações do Arquivo Nacional (Sian), o que demostra falta de conhecimento em relação às finalidades tanto do MR como do Sian, voltado ao acervo custodiado apenas pelo AN. Apesar da evidente fragilização da área, a direção-geral investiu na promoção de homenagens e narrativas que ‘exaltam’ a reconstrução do Memórias Reveladas, à qual se somou a edição de portarias ministeriais que dispuseram sobre as atribuições da divisão responsável. Podemos citar, como parte destes esforços, a portaria MGI n. 3.072, de 8 de maio de 2024, que instituiu um grupo de trabalho para articulação institucional e promoção do direito à memória, que deveria apoiar as ações e projetos do MR, com o prazo de seis meses para a apresentação do relatório final, a contar de junho de 2024. Em dezembro de 2024, a portaria MGI n. 9.615 ampliou para oito meses o prazo de conclusão dos trabalhos. As atividades desse grupo permanecem desconhecidas dos servidores do AN.
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